M.
15 OctVida na Suíça – personagens
“Num entendo porque essas brasileiras aqui ficam se estressando porque querem trabalhar e não conseguem. Tem que provar o quê? Isso pra mim é coisa de mulher mimada. E eu lá vim aqui pra trabalhar? Já trabalhei muito agora que tô com 40 e poucos eu quero é sossego!”
M. nasceu na roça, “no meio do mato mesmo”, interior do Ceará. Aos dez anos foi mandada pelos pais para uma casa de família em Fortaleza. Empregada doméstica auxiliar. A família era boa, colocou M na escola, a tratava bem. Aos dezenove a dona da casa abriu uma loja de roupas e levou M. pra trabalhar com ela. Limpava, servia cafezinho pras madames locais. Só de observar e imitar foi aprendendo outras coisas. Virou vendedora, a mais popular da loja. A loja cresceu e M. tornou-se gerente. “Nessa época que a gente era criança as meninas todas como eu lá no nordeste eram empregadas. Eu tive é sorte. Meu irmão que era homem e não fazia essas coisas da casa virou foi bandido. Matador. Saiu agorinha da cadeia, vamos ver se toma jeito”. Com o salário da loja comprou seu apartamento em Fortaleza. Frequentava os bares onde os gringos íam, “deus me livre casar com um traste brasileiro, vi o que minha mãe passou”. Conseguiu um e veio parar aqui.
Todo ano vai pro Brasil com o marido e fica na casa onde nasceu. “Ali nâo tem nem chão, as janelas são aquele buraco nas paredes mas a gente gosta. Precisa ver as panelas da minha mãe tudo arriada, brilhando. A gente não faz é nada porque lá não tem nada mas tem um riacho, tem rede e tem silêncio”.
M. foi minha melhor amiga por anos até que perdemos o contato pela distância
Purity
12 OctSão as ações do passado que controem o presente que logo vira também passado e delimita o futuro. A infância e a juventude são fundamentais na construção do caráter. Mas é a culpa e consequentemente o arrependimento que mudam o rumo da existência. Mais uma vez é sobre essa base que Jonathan Franzen se debruça no novo romance Purity. A narrativa é longa e como em Liberdade ou em As Correções vai e volta no passado na tentativa de explicar o presente.
Em Purity, o recurso constrói duas grandes narrativas paralelas que vão e voltam no tempo não só pra mostrar onde se dá o encontro dos personagens mas para explicar o presente pelo passado. Apesar de Purity, ou Pip, dar título ao romance, os dois personagens principais são os antagonistas, Andreas Wolf e Tom Aberrant. O alemão Andreas, nascido no leste, filho de figuras importantes do governo comunista, é um carismático whistleblower com uma obsessão por garotas novinhas. Absolutamente inspirado em Julian Assange, Andreas é tão caricatura quanto realidade. É sedutor e hipócrita. Critica a opressão do comunismo mas usa a influência dos pais poderosos para se safar. Quando o muro cai participa de uma espécie de “comissão da verdade” que analisa os arquivos da Stasi, bradando contra a opressão do sistema em entrevistas, mas o que lhe importa realmente é ter a certeza de que tudo o que se refere a ele já não existe mais. Quando a internet se populariza passa a codificar e logo a espionar. Em pouco tempo é rival de Assange no posto de herói da verdade comandando um séquito de hackers. Expõe os segredos alheios mas guarda todos os seus. Como diz a personagem, não por acaso jornalista investigativa, que o desmistifica: “guardar segredos é civilizatório”. Mas não para quem finge ser herói. Franzen é implacável com figuras como Assange e Snowden, reduzidos a espiões hipócritas que não passam de moleques velhos – o alvo dele é Assange – mimados e neuróticos.
O outro protagonista é Tom Aberrant, jornalista americano filho de mãe alemã do leste(e mais tarde o econtro dos personagens se dá por esse motivo) e pai americano. Idealista mas nem tanto. Tem a vida mudada quando começa um romance com Annabel, jovem artista incapaz de criar algo consistente que o atrai tanto pela beleza e esquisitice (eles se conhecem quando ela ela faz um manifesto feminista onde se enrola, nua, em papel) quanto por ser filha de um bilionário. A moça culpa o pai pela morte da mãe e se recusa a viver as custas do dinheiro “sujo” mas não se desfaz dos vestidos caros nem das garrafas de vinho que custam um salário e é isso que no início mais atrai o tão correto Tom. Por fim se apaixonam de verdade e vivem um amor doentio, Annabel só funciona na lua cheia.
É em Berlin que os dois protagonistas se esbarram e criam o elo, a partir de um crime, que os unirá no presente e no futuro. Diferente dos outros romances de Franzen, Purity vai além da construção emocional dos personagens com base nas relações familiares. O romance tem uma narrativa de livro policial, o cerne é um crime e a culpa que dele decorre, e fôlego para quase 600 páginas mas, no fim, o que importa – e aqui ele volta a ser o Franzen de sempre – é dissecar e compreender como o caráter se molda pelas relações familiares. Tanto o “bonzinho” Tom quanto o “malzinho” Andreas são puras construções das neuroses familiares.
Vida na Suiça: Salsichas
25 SepVida na Suíça:
Tem uma fila enorme na rua principal da cidadezinha. Descubro logo que o moço dos cartazes derrubados pelos adolescentes está lá ao vivo distribuindo santinhos. É candidato de sei lá que partido a sei lá o quê. Foi esperto. Armou uma grelha e colocou um amigo pra fazer salsichas e distribuí-las gratuitamente. Arrebanhou um eleitorado na faixa dos 45 em diante, o mesmo que já deixou vários prazeres no passado e hoje se concentra num único prazer: comer.
Desvio. Ao meu encontro vem um homem forte de cabeça raspada e cara de mau. Procura algo no bolso fundo da jaquela militar second hand. Vai meter o soco inglês na minha cara. “Chicana dos infernos volta pra Síria!”. Do bolso saiu um iphone todo limpinho e ele se pôs a digitar. Aposto em Emoticon wink Emoticon smile Emoticon tongue
Claro! Que burra! Por que seria um neonazi se tem a mesma aparência de 89% dos meus amigos gays?
A lua está um estouro!
A felicidade está no primeiro dia de férias
15 AugVida na Suíça:
O dia mais feliz do ano, onde eu moro, geralmente é no fim de junho (pode ser também no início de julho), sexta-feira à tarde, primeiras horas das férias de verão. Tem uma festa grande na cidade que dura de sexta à tarde até domingo no fim do dia. Barracas com comidas variadas, algodão doce e maçã do amor, num palco pequeno uma banda se esganiça, num outro um monte de velhinhos fazem coro em músicas tradicionais. Tem um parque de diversões comandado por ciganos com carrossel, tiro ao alvo e dois brinquedos desses que sobem, giram, metem medo e todo mundo grita. E tem o Bruno, um senhor com uma moto vintage espetacular. Bruno fica no cantinho dos carros antigos. Qualquer um pode pagar para dar uma volta. Tem ônibus antigo, jeep de guerra, conversíveis vermelhinhos com estofado creme cheiroso. A renda vai para uma instituição onde crianças com deficiências variadas vivem e estudam, a mesma que monta o stand onde tentamos acertar a cara do Pato Donald com bolas de meia. Bruno tem aquele anexo acoplado na moto onde cabem duas pessoas. Eles nos leva, eu e minha filha, pelo caminho mais longo porque sabe que é esse que a gente gosta. O vento bate suave no rosto. Fazendas, riachos, plantações esculpindo os morros com girassóis. A paisagem fica toda embaralhada na velocidade do olhar, num monte de verde e ar fresco,. É possível fechar os olhos, marcar a memória e sentir a felicidade que só o primeiro dia de férias é capaz de oferecer.
Essa felicidade é tão efêmera quanto pode ser e logo vêm aqueles dias em que o sol some cedinho e as noites, longuíssimas, nos lembram que quem manda é a realidade.