Ela diz que sabe
29 Aprida na Suíça
Ela é morena, muito baixinha, faz as sobrancelhas bem arqueadas com um lápis preto e cuida com esmero das longuíssimas unhas decoradas com glitter. Veio pra Suíça há vinte e cinco anos, fala pouco o alemão mas se vira melhor do que eu. Saiu do interior do Pará, onde já praticava a profissão mais antiga do mundo, em busca de marido. É divertida, engraçada, amorosa e por isso é sempre um prazer encontrá-la pelo caminho.
– Oi, meniiiiiiiiina! Vamos fazer comprinhas, é? Comprinhas são a melhor coisa que tem fora os filhos, né?
– É! Já fiz e já estou voltando pra casa.
– Vai filha, vai fazer comidinha pro seu marido.
Eu fui. Segui para um lado, ela para outro. Dez segundo depois ela gritou: Aaaaaaaaiiiiii!
– O que foi?
– Menina! Tu cortou o cabelo, é?
– Já faz um ano, você não tinha visto?
– Eu não! De frente nem parece
– É que já cresceu, na frente tá compridinho.
– Pois então deixe atrás feito na frente, deixa esse cabelo crescer que é isso que eles gostam na gente, as brasileiras.
– Ah! Não tenho mais saco nem idade pra cuidar de cabelão. A cara tá ficando velha, não combina mais.
– Qué iiiiiiisso? Homem não liga pra cara não! Gosta é de ver a mulher de costas com o cabelão tocando na bunda, vai por mim, deixa seu cabelo crescer bem comprido de novo.
Ela piscou e foi fazer comprinhas.
A árvore
6 AprPrimeiro morreu a mulher. A pele azulou após um rato ser descoberto na cabana. Veio a febre alta, as feridas se alastraram. Depois foram os filhos. Um a um devorado pela peste. Sobrou o homem para enterrar a família. Sobre os corpos plantou uma muda como lápide que lembrasse seus amores perdidos. A muda vingou. É uma das árvores mais antigas da Europa. Uns dizem que tem 600 anos, outros afirmam, com certeza, mais de mil. Fica no Aargau, Suíça.
Castelo Habsburg
6 AprUm dos mais antigos castelos da Europa é de 1020, fica no Aargau, Suíça. O luxo ainda era miragem inimaginável na Europa central. O castelo é duro. Pedra sobre pedra, janelas mínimas, um frio intenso entre escadarias vertiginosas e uma vista maravilhosa para o campo que percorre a planície. Sobre os Habsburg, da Wikipedia: “Por ter sido elevada a realeza em 1273, é denominada a “família imperial” do Sacro Império Romano Germânico (962-1806); e por ter sido a soberana da Áustria desde 1278 até 1918, tendo inclusive sido a única governante do Império Áustro-Húngaro (1867-1918), é denominada como a “família imperial austríaca.”
Castelo de Sigmaringen
15 MarEu tinha 13 anos quando o governo de Vichy se instalou no castelo. Morávamos num anexo reservado para empregados, no caso meu pai era professor dos príncipes. Coisas estranhas aconteciam na cidade enquanto a vida cotidiana continuava mais ou menos normal. Eu descia o morro de trenó até a escola. Foi assim que dei de cara com umas pessoas que nunca havia visto na vida. Eles usavam roupas esquisitas e tinham a pele queimada de sol. Andavam carregando armas e bodes cheios de sinos pendurados. Um dia me deram uma pá e falaram: “vá, abra as valas com força e ânimo”. Eu joguei a pá na floresta e fui brincar. Dias depois os aviões chegaram, voavam baixinho para burlar os radares, iam leves quase encostando no chão. De repente começava aquela rajada de balas alcançando qualquer ser vivo que se movesse. Aí eu descobri a razão das valas, era para lá que corríamos, nos deitávamos e esperávamos que não houvesse mais nenhum barulho do motor dos aviões. Fora isso, a vida corria normalmente. Até o dia que levei o maior susto de minha vida com os negros armados carregando facões entre os dentes. Estávamos todos no bunker do castelo, um túnel aberto nas rochas. De repente eles entraram! Nunca tinha visto um negro na vida e nem sabia que eles existiam. Todos tinham facões enormes. Diziam que cortariam nossas cabeças. Eu os olhava maravilhado, gente com outra cara tão diferente como personagem de um livro. Eram os senegaleses. Não só não cortaram nossas cabeças como foram gentis conosco. Nunca me esqueço da cara deles. Altos. Bonitos.
Ela para um lado, eles para outro
24 FebVida na Suíça
Oito horas de uma manhã como todas as outras: gelada. No ônibus que leva à estação de trem, ao hospital e ao centro da cidade, uma moça de uns vinte anos conversa pelo microfone do iPhone. As unhas postiças enormes e de pontas finas como pinças seguram o microfoninho bem perto da boca lambuzada de gloss mas mesmo assim ela fala alto. Usa um tom de base mais escuro do que a pele, que se quebra ao redor do nariz empinado.
Ao seu lado um homem de mais de oitenta anos enche os olhos d’água e balança a cabeça discretamente de um lado para o outro. Sua mulher oferece um lenço e segura em sua mão. Ele limpa as lágrimas e se constrange porque percebe que eu olhei.
No destino final, o casal desce com dificuldade, ela o ajuda. A moça desce junto, sacode o cabelo, ri alto com os lábios melecando o microfone e sai em disparada.
Ela para um lado, eles para outro.