A felicidade está no primeiro dia de férias
15 AugVida na Suíça:
O dia mais feliz do ano, onde eu moro, geralmente é no fim de junho (pode ser também no início de julho), sexta-feira à tarde, primeiras horas das férias de verão. Tem uma festa grande na cidade que dura de sexta à tarde até domingo no fim do dia. Barracas com comidas variadas, algodão doce e maçã do amor, num palco pequeno uma banda se esganiça, num outro um monte de velhinhos fazem coro em músicas tradicionais. Tem um parque de diversões comandado por ciganos com carrossel, tiro ao alvo e dois brinquedos desses que sobem, giram, metem medo e todo mundo grita. E tem o Bruno, um senhor com uma moto vintage espetacular. Bruno fica no cantinho dos carros antigos. Qualquer um pode pagar para dar uma volta. Tem ônibus antigo, jeep de guerra, conversíveis vermelhinhos com estofado creme cheiroso. A renda vai para uma instituição onde crianças com deficiências variadas vivem e estudam, a mesma que monta o stand onde tentamos acertar a cara do Pato Donald com bolas de meia. Bruno tem aquele anexo acoplado na moto onde cabem duas pessoas. Eles nos leva, eu e minha filha, pelo caminho mais longo porque sabe que é esse que a gente gosta. O vento bate suave no rosto. Fazendas, riachos, plantações esculpindo os morros com girassóis. A paisagem fica toda embaralhada na velocidade do olhar, num monte de verde e ar fresco,. É possível fechar os olhos, marcar a memória e sentir a felicidade que só o primeiro dia de férias é capaz de oferecer.
Essa felicidade é tão efêmera quanto pode ser e logo vêm aqueles dias em que o sol some cedinho e as noites, longuíssimas, nos lembram que quem manda é a realidade.
Ela diz que sabe
29 Aprida na Suíça
Ela é morena, muito baixinha, faz as sobrancelhas bem arqueadas com um lápis preto e cuida com esmero das longuíssimas unhas decoradas com glitter. Veio pra Suíça há vinte e cinco anos, fala pouco o alemão mas se vira melhor do que eu. Saiu do interior do Pará, onde já praticava a profissão mais antiga do mundo, em busca de marido. É divertida, engraçada, amorosa e por isso é sempre um prazer encontrá-la pelo caminho.
– Oi, meniiiiiiiiina! Vamos fazer comprinhas, é? Comprinhas são a melhor coisa que tem fora os filhos, né?
– É! Já fiz e já estou voltando pra casa.
– Vai filha, vai fazer comidinha pro seu marido.
Eu fui. Segui para um lado, ela para outro. Dez segundo depois ela gritou: Aaaaaaaaiiiiii!
– O que foi?
– Menina! Tu cortou o cabelo, é?
– Já faz um ano, você não tinha visto?
– Eu não! De frente nem parece
– É que já cresceu, na frente tá compridinho.
– Pois então deixe atrás feito na frente, deixa esse cabelo crescer que é isso que eles gostam na gente, as brasileiras.
– Ah! Não tenho mais saco nem idade pra cuidar de cabelão. A cara tá ficando velha, não combina mais.
– Qué iiiiiiisso? Homem não liga pra cara não! Gosta é de ver a mulher de costas com o cabelão tocando na bunda, vai por mim, deixa seu cabelo crescer bem comprido de novo.
Ela piscou e foi fazer comprinhas.
É Natal!
25 NovVida na Suíça:
-Me-u de-us! Olha isso! A gente precisa disso!
-Noooossa! Peraí vou ver quanto custa.
-Pensa como ficaria no terraço, naquele pedaço bem onde não tem nada.
– Ish… não dá. É o preço de uma bicicleta nova.
– Mas olha a etiqueta e veja se é da China ou da Alemanha. Se for da Alemanha vale a pena, vai durar.
Saímos eternamente frustrados do mercado. O Papai Noel inflável de cinco metros ficaria perfeito no nosso apartamento. Era só isso o que faltava. Depois do inflável instalado poderiamos morrer em paz.
Tudo começou há seis ou sete anos com uma singela árvore de Natal. Criança teeeeem que ter Natal, não importa a religião.
Bolas vermelhas. Precisa das douradas também. Papel laminado. Luzes. Mais luzes. Estrela no topo. Estrela com luzes no topo. Dois anos depois passamos da maconha ao crack ao comprar, além de uma árvore maior, um trenó puxado por renas iluminadas e um Papai Noel bagaceiro que foi pendurado na janela. Mais um ano e estávamos tomados pelo vício. Arrancamos o Papai Noel que estava pendurado em uma escada subindo por uma das janelas e o colocamos sentado no trenó. Lindo. Mas ninguém via o trenó porque, claro, moramos num terraço e só os apartamentos dos prédios mais altos conseguiam admirar nossa decoração. Então no Natal seguinte grudamos umas luzes numa rede de proteção de um lado do apartamento. Luzes azuis. Mas faltava o outro lado. Compramos mais luzes e fizemos um “ninho” para o trenó com o Papai Noel.
E começamos a enlouquecer. Teve ano que meu marido ficou quatro horas pendurado no terraço, temperatura abaixo de zero, para literalmente contornar o prédio todo com luzes. Os vizinhos adoraram. O incentivo fez com que, um ano depois, além das luzes azuis de um lado, o trenó com o Papai Noel do outro e o contorno do prédio, colocássemos uma cascata, sim uma cascata de luzes que descia pela fachada do prédio e ainda o perfil de renas e bonecos de neve na fachada. A árvore de Natal só crescia, ocupando um terço da sala e riscando o teto, e agora não era mais enfeitada só com bolas, luzes e papel laminado. Fadas, borboletas, estrelas, sinos, pedras coloridas, bonequinhos de madeira, soldadinhos, bailarinas, ursinhos, veadinhos, sapatos e bolsas em miniatura e qualquer tralha fazia parte da decoração. Tinha vela acesa por toda parte. Presépio, uns dois. Guirlanda, uma em cada porta. Tínhamos que comer encolhidinhos para não esbarrar em nada. As viagens de fim de ano ficaram para trás, o décimo terceiro começou a ser engolido pela decoração.
A gente fazia o tradicional passeio a pé para ver as decorações de outras casas, não exatamente para admirar mas para invejar, comparar e ver o que faltava na nossa. Pegávamos o carro e subiamos a montanha a fim de ver o apartamento de cima. Uau! Mas sempre faltava alguma coisa. E a gente comprava.
Até que um dia chegou uma conta de luz astronômica e a gente entrou na rehab. Tristeza.
Mas esse ano a gente decidiu que não vai viajar…
Kinder
22 NovVida na Suíça:
Diálogo entre duas crianças de 10 anos.
– Você não liga que o X te chame de macaco?
– Eu não. Ele é meu melhor amigo.
– Mas você sabe que é muita falta de respeito, né?
– É. Eu sei.
– Ele te chama de macaco pra deixar claro que ele é quem manda nessa amizade, pra te deixar pra baixo.
– Pode ser. Eu não ligo.
– Próxima vez que ele te chamar de macaco, lembra de mim. Pensa que eu te acho bem melhor do que ele. Daí você ri por dentro.
-:)
Seu pai é traficante, o meu é detetive
7 NovUma semana antes a polícia havia prendido dez integrantes da máfia calabresa. No jornal das oito, um vídeo feito com uma microcâmera escondida, mostrava uma reunião da cúpula da mafia italiana na Suíça. Gente poderosa cheia de mortes sobre os ombros. A reunião era na pizzaria de um deles. Nem todos foram presos. Todos tinham (tem) profissões que suscitavam nenhuma suspeita. Um dono de pizzaria, um operário de fábrica, um dirigente de um centro de acolhimento a imigrantes.
” – Para um pouquinho mais trás, assim fica muito na cara. Olha aí. Tá vendo?
– Eu não acho, não. Não tem nada demais. A casa é grande mas normal.
No banco de trás a criança, olhos grudados no iPad clama.
– Que coisa chata. Vai demorar?
– Não, é só um minutinho. Então, quem você conhece que mora numa mansão dessas?
– O R. W. mora.
– Mas o R. W. é CEO de uma multinacional, imagina o salário dele! E outra: eles têm babá e empregada. Quem aqui tem babá e empregada?
– Todas as brasileiras ricas. E as russas.
– Mas ele é da Italia! Da italia!
– Raciocina comigo: o cara é cafonão, a mulher vem do país mais pobre do leste europeu, ela é mega perua, eles moram numa mansão e têm empregada e babá. É normal?
– Olha, o comércio pode dar bastante dinheiro.
– Meu! Que comércio? O cara vende alisante de cabelo brasileiro e ficou rico desse jeito? Quem na Suíça usa alisante de cabelo fora uma meia dúzia de brasileiras e caribenhas?
– Sei lá. Deve ter salão que compra.
– Ok. Mas aí a ter uma mansão, babá e empregada…
– Isso é preconceito!
– Não é preconceito, só estou juntando as peças.
– Saaaaaaaaco. Vamos embora. Vai demorar?
– Peraí, querida.
– O que a gente tá fazendo aqui perto da casa da minha amiga?
– Nada. Estamos vendo como a casa é bonita.
– Então… pensa. creme alisante do Brasil, italiano da Calábria, conexão na Moldávia, mansão… Entendeu?
– Não!
– Já pensou que nos potes de alisante pode ter pasta de cocaína?
-Que viagem…
– É óbvio, é claro! Ele é traficante! Ele é da máfia calabresa! Ele traz a pasta nos potes do Brasil, a mulher é a conexão com a mafia do leste europeu, ele distribui pela Europa.
– O que é traficante? Ai, que saco… vamos embora?
– Traficante é uma profissão de comércio, de vender umas coisas.
– E o pai da minha amiga faz isso? Cool!
– Você não vai falar nada pra ela, né?
– Por que? Não pode falar?
– Melhor não.
– Vou falar! Vou falar! Se a gente não for embora agora, amanhã eu vou falar que meus pais ficaram escondidos olhando a casa dela e que minha mãe falou que o pai dela é trafi… traficoin… como é mesmo a palavra dessa profissão?
– Comerciante.
-Você falou outra coisa.
– Não, xuxu, eu disse comerciante mesmo. Vamos embora, outro dia a gente conversa sobre isso.”
Três dias depois o homem toca a campainha da minha casa com um saco enorme de mexericas. Eu abro, ele beija o dorso da minha mão. Diz que trouxe especialmente pra mim as mexericas da Calabria, dá uma piscadinha de olho e vai embora.
Nunca mais nos vimos.
Maludula e Abdullah
6 NovMaludula quase não se vê. Primeiro porque pouco sai à rua. Segundo porque quando sai está coberta de pano até o chão. Sobra o rostinho redondo emoldurado por mais uma camada de tecido preto. Abdulahh está sempre na rua. Não fala com ninguém. Primeiro porque não fala alemão. Segundo porque não quer, anda rápido, olha pra lugar nenhum e não diz bom dia pra ninguém. Moram no predinho cinza mais feioso do bairro, o de janelas pequenas, No verão enchem a escadinha lateral de gerânios, no inverno ninguém os vê. Vieram do Afganistão, ninguém sabe como o que faz parte do bairro acreditar que são terroristas e outra parte, milionários fugitivos. São refugiados políticos e como refugiados têm suas histórias bem guardadas.
O grupo se encontra no território da igreja católica que cede seu espaço para organizações de meninas (e meninos) mais velhas realizarem atividades com as mais novas. Desde brincadeiras, jantares (elas aprendem a cozinhar, graças a deus!), teatro, shows de música, artesanato até a introdução de atividades de cidadania (recolher papel, lixo, reciclar vidros, pets etc).
“Seria bom pra sua filha participar pra aprender a Língua. Essas atividades socializam e funcionam como aulas extras de alemão”
” She don’t go. She don’t go. Muslim, muslim, muslim”
“Mas não tem nada a ver com religião. É só que a igreja cede a infra deles pras garotas. Tem meninas de todos os lugares e de todas as religiões, inclusive as sem religião.”
“Ah… this is not good, not good”.
Ele cedeu e a menina acabou sendo liberada. Dois anos depois,quando todas fizeram o teste para poder pilotar bicicleta no trânsito, ela apareceu de cabeça baixa. “Não posso fazer o teste, não tenho bicicleta”. “Não tem problema”. Ela foi embora de cabeça baixa,
Uma semana depois apareceu toda feliz e orgulhosa com uma bicicleta semi nova mas tão valorizada como uma novíssima e cara costuma ser . As meninas fizeram uma vaquinha ( e a igreja completou… mas isso a gente não disse pro pai).