Como num joguinho de criança, às vezes a gente avança duas casas e às vezes a gente tem que voltar ao início. Eu moro na Suíça há oito anos. Poderia falar alemão super bem mas não falo. Nos primeiros anos aqui quase não pude estudar. Eu tinha um bebê, que depois virou uma criança pequena, para cuidar. Minha filha é alérgica e tem asma, nada demais, igual a milhões de crianças no mundo todo. Mas isso na prática, significa, tosse, muita tosse, vômitos, falta de ar, urticárias pela pele, nariz sempre pingando, noite e noites sem dormir, idas frequentes à emergência de hospitais.
Tirando um curto período de uns três meses em que pude contar com a ajuda da avó paterna e mais uns outros quatro meses que arrumei uma babysitter brasileira, sempre cuidamos sozinhos da nossa filha. Não por opção mas sim pela falta de opção. Ser estrangeiro com filhos pequenos na Europa pode ser um perrengue total. A avó e a babysitter ajudaram durante uns sete meses, apenas enquanto eu fazia um curso básico de alemão; se não, não dava nem para comprar o antialérgico na farmacinha da esquina.
Sempre exausta por não dormir direito à noite, acabei largando o alemão. Mudei de cidade, esperei minha filha crescer um pouco e entrei de novo num curso. Fiz praticamente inteiro, uns três anos estudando à noite duas vezes por semana. Nesses cursos noturnos, conheci todo tipo de imigrante, até o não imigrante: mulheres do mundo todo cujos maridos vieram para a Suíça por causa do emprego ($$$). Esses maridos, invariavelmente físicos ou engenheiros, geralmente trabalhavam em empresas gigantes e ganhavam muitíssimo bem. Não falavam uma palavra de alemão porque nessas multinacionais a língua oficial é o inglês. Então as mulheres estudavam para poder resolver as coisas práticas da vida no estrangeiro. Todas faziam questão de falar perfeitamente o alemão para não serem confundidas com os imigrantes. Ou seja, queriam mostrar com a língua o status de “rica” porque quem fala mal são os “pobres”.
Não deixa de ser verdade. Diferente das bonitonas, o imigrante trabalha e trabalha muito. Se ele veio para cá, não foi por causa de um salário milionário numa multinacional mas sim porque não tinha um salário. Ele também veio pensando que aqui os filhos podem ter uma chance muito melhor do que a que ele (não) teve em seus país de origem onde quase todo mundo está ferrado. Eles não têm culpa de não falar direito nem a própria língua; por eles, eles falariam bem, trabalhariam por um bom salário, comeriam bem, viveriam bem. Não é o que todo mundo quer?
Muitos estrangeiros que moram no Brasil falam super mal português mas poucas pessoas se preocupam com isso. O chef Claude Troisgois que apresenta um programa de gastronomia na TV, comete erros enormes de português. Quem se importa? Ninguém porque faz parte dele esse sotaque com todos os erros, faz parte dele ser um francês que trabalha no Brasil. Ele não precisa fingir que é um brasileiro para morar e trabalhar no Brasil. O legal dos estrangeiros no Brasil é que eles misturam a cultura de suas origens, inclusive a língua, com o que eles gostam da cultura brasileira. Ou como diria o próprio Troisgrois, fazem uma mélange danada.
Mas aqui é diferente, falar perfeitamente a língua é um símbolo de status. É a distinção entre o rico e o pobre, o imigrante e o não imigrante. O tal do “integrado” e o “não integrado” que até agora não entendi direito o que quer dizer. Porque integração na Europa, para muitos, significa você deixar de ser como é e quem sempre foi para se transformar numa cópia de quem você não é.
Na Alemanha, um dos temas preferidos de piadas é o sotaque dos imigrantes turcos. Aqui, as piadas são com o sotaque e o jeito de falar dos imigrantes da ex-Ioguslávia. Vamos comparar: como no Brasil a escravidão e a imigração européia já eram, quem faz o trabalho pesado nas capitais do sudeste é tradicionalmente o nordestino pobre que estudou muito pouco porque tinha que se virar desde cedo. Imagine se o sotaque do nordestino fosse sempre o centro de piadas… Não teria graça nenhuma, seria idiota na verdade.
Agora, dois anos depois de nunca mais pegar num livro em alemão, resolvi voltar para um curso. Andei duas casas pra trás no joguinho. Não porque eu quero falar perfeito o alemão e ser considerada uma “mulher de (alta) classe”. Apesar de ficar irritada quando me tratam feito criança por não falar a língua perfeitamente, estou me lixando se acham que sou burra, pobre, puta, homem, mulher, travesti, cachorro ou sei lá o quê.
Eu quero mesmo é entender todos os filmes e ler todos os livros de autores alemães que eu gosto mas principalmente, entender tudinho das piadas da Anke Engelke. Taí uma comediante que consegue fazer piada de estrangeiro/ imigrante com muita graça e leveza; e quase sempre, tirando sarro do preconceito dos próprios alemães.